Simbiótico

sexta-feira, setembro 17, 2004

Manias estrábicas


O homem tinha lá, seus trinta e poucos anos e um péssimo hábito. Deixava tudo para amanhã. "Não vai casar Euzébio?", perguntava a vizinha. "Amanhã, quem sabe...", balbuciava rapidamente. Respostas métricas. Quando pensava em ir trabalhar deixava ao acaso. Nunca ficou num serviço por mais de sete horas. Desempregado. Sempre assim.
Ainda morava com a mãe, viúva de um general reformado. No mesmo casebrezinho. No mesmo bairro sujo. Pensou e repensou várias vezes em mudar. Nunca o fez. Argumentando da mesma maneira: "o amanhã ainda chegará!".
A velha, coitada, vivia prostrada, um sentimento de culpa lhe corroia as entranhas. Para Dona Lourdes, era difícil ver o filho sob o mesmo angulo e ter que admitir que era um "caso perdido", como fazia questão de frisar a vizinhança galhofeira. Ela, desgostosa da vida, admirava a foto do marido sobre a pequena cômoda de mogno e perguntava-se: "Como pode não ter puxado nada a bravura do pai?".
Mas ele tinha sim, uma característica pouco peculiar - talvez à única - herdada do pai. Era estrábico. Os dois olhos flexionavam-se em apenas um ponto: o amanhã. À parte, possuia outras manias, que talvez, fossem menos patogênicas. Nunca pisava nas riscas das calçadas, conferia três vezes a fechadura do seu armário e matava todos os gatos da vizinhança.
Raramente via-se Euzébiozinho - como insistentemente lhe chamavam - batendo perna por aí. Anti-social. Tinha medo do que poderiam falar a seu respeito. Às vezes ia ao mercadinho da esquina a pedido da velha. Um passo apressado, nervoso. Juntava lixo, cuidando das linhas na calçada. Quando enfim chegava ao estabelecimento, no máximo dizia um "olá", ao dono. Logo saia.
Entretanto, Euzébio andava mais introspectivo que o normal. Havia vezes que ficava por longos períodos trancafiado no seu quarto. Ele o armário e a cama. A mãe nunca lhe falara nada, também pudera, tinha medo que o filho ficasse revoltado. Mas sabia que durante a noite ele saia do cubículo - a pia da cozinha, por vezes, gotejava.
Sua casa era uma espécie de manto harmonioso, desde os tempos do pai. Dona Lourdes tratava com zelo às tarefas domésticas, sempre numa rotina conveniente para uma dona-de-casa aposentada. O aperto no coração dava-se ao visualizar a porta do quarto de seu filho. Euzébio sempre lá, agora tinha pego por hábito colecionar baratas. Admirava as suas picurruchas zarolhas. Todas vivas.
Como era de se esperar, caro leitor, as gotas se esvaíram no ralo. Por incrível que pareça na manhã seguinte, a porta do quarto estava escancarada. A mãe, curiosa, com o fato inusitado, ligeiramente vai até lá. Ficara perplexa ao ver baratas saindo da boca de seu querido Euzébizinho. "Não pode ser! Meu Deus!", exclama, o rosto marejado, um ar cético, perante o fato.
Chega à primeira vizinha, assustada com o desvario. A face em nada esconde a marca do deboche. Nem sequer contem um risinho de escárnio saindo do canto dos lábios, não se importa com a dor da mãe. Bisbilhoteira como sempre fora, abre o ruidoso armário de Euzébiozinho. Empalidece. Exatamente sete crânios de gatos, enfileirados nos cabides. A enigmática mensagem: "Pelo menos para vocês o amanhã nunca irá chegar!", a ultima do introspectivo Euzébio. Talhada a canivete no fundo do invólucro.

Fale comigo antes de catar qualquer coisinha por aqui.